O deusDA HONESTIDADE INDO PASSEAR

O deusDA HONESTIDADE INDO PASSEAR

sábado, 26 de julho de 2008

Teoria do canalha

A teoria do canalha
Arnaldo Jabor

Eu não sou um canalha; eu sou o canalha. Tenho orgulho de minha cara de pau, de minha capacidade de sobrevivência, contra todas as intempéries. Enquanto houver 20 mil cargos de confiança no País, eu estarei vivo, enquanto houver autarquias dando empréstimos a fundo perdido, eu estarei firme e forte. Não adianta as CPIs querendo me punir. Eu saio sempre bem. Enquanto houver este bendito código de processo penal, eu sempre renascerei como um rabo de lagartixa, como um retrovírus, fugindo dos antibióticos. Eu sei chorar diante de uma investigação, ostentando arrependimento, usando meus filhos, pais, pátria, tudo para me livrar. Eu declaro com voz serena: “Tudo isso é uma infâmia de meus inimigos políticos. Eu não me lembro se esta loura de coxas douradas foi minha secretária ou não. Eu explico o Brasil de hoje. Eu tenho 400 anos: avô ladrão, bisavô negreiro e tataravô degredado. Eu tenho raízes, tradição. E eu sou também ‘pós-moderno’, sou arte contemporânea: eu encarno a real-politik do crime, a frieza do Eu, a impávida lógica do egoísmo”.
No imaginário brasileiro, eu tenho algo de heróico. São heranças da colônia, quando era belo roubar a Coroa. Só eu sei do delicioso arrepio de me saber olhado nos restaurantes e bordéis. Homens e mulheres vêem-me com gula: “Olha, lá vai o canalha!”, sussurram fascinados por meu cinismo sorridente, os maîtres se arremessando nas churrascarias de Brasília e eu flutuando entre picanhas e chuletas, orgulhoso de minha superioridade sobre o ridículo bom-mocismo dos corretos. Eu defendo a tradição endêmica da escrotidão verde e amarela. Sem mim, ninguém governa, sem uma ponta de sordidez, não há progresso.
Eu criei o sistema que, em troca, recria-me persistentemente: meus meneios, seus ademanes, meus galeios foram construindo um emaranhado de instituições que regem o processo do País. Eu sou necessário para mantê-las funcionando. O Brasil precisa de mim.
Eu tenho um cinismo tão sólido, um rosto tão límpido que me emociono no espelho. Chego a convencer a mim mesmo de minha honestidade, ah! ah! Como é bom negar as obviedades mais sólidas e ver a cara de impotência de inquisidores. E amo a adrenalina que me o acende o sangue quando a mala preta voa em minha direção, cheia de dólares, eu vibro quando vejo os olhos covardes dos juízes me dando ganho de causa, ostentando honestidade, fingindo não perceber minha piscadela maligna e cúmplice na hora da emissão da liminar. Adoro a sensação de me sentir superior aos otários que me compram, aos empreiteiros que me corrompem, eles humilhados em vez de mim.
Eu sou muito mais complexo que o bom sujeito. O bom é reto, com princípio e fim; eu sou um caleidoscópio, uma constelação.
Sou mais educativo. O homem de bem é um mistério solene, oculto sob sua gravidade, com cenho franzido, testa pura. O honesto é triste, anda de cabeça baixa, tem úlcera.
Eu sou uma aula pública. Eu faço mais sucesso com as mulheres. Elas se perdem diante de meu mistério, elas não conseguem prender-me em teias de aranha, eu viro um desafio perpétuo, coisa que elas amam em vez do bondoso chato previsível. A mulher só ama o inconquistável. Eu conheço o deleite de vê-las me olhando como um James Bond do mal, excitadas, pensando nos colares de pérolas ou nos envelopes de euros. Eu desorganizo seu universo mental. Muitas vezes elas se vingam de mim depois, me denunciando, claro, mas só eu sei dos gritos de prazer que lhes proporcionei com as delícias do mal que elas adivinhavam. Eu fascino também os executivos de bem, porque, por mais que eles se esforcem, competentes, dedicados, sempre se sentirão injustiçados por algum patrão ingrato ou por salários insuficientes. Eu, não; eu não espero recompensas, eu me premio. Eu tenho o infinito prazer do plano de ataque, o orgasmo na falcatrua, a adrenalina na apropriação indébita. Eu tenho o orgulho de suportar a culpa, anestesiá-la – suprema inveja dos neuróticos. Eu sempre arranjo uma razão que me explica para mim mesmo. Eu sempre estou certo ou sou vítima de algum mal antigo: uma vingança pela humilhação infantil, pela mãe lavadeira ou prostituta que trabalhou duro para comprar meu diploma falso de advogado.
Eu posso roubar verbas de cancerosos e chegar feliz em casa e ver meus filhos assistindo desenho na TV. Eu sou bom pai e penso muito no futuro de minha família, que graças a Deus está bem. Eu sou fiel a uma mulher só, que vai se consumindo em plásticas e murchando sob pilhas de botox, mas nunca a abandono, apesar das amantes nas lanchas, dos filhos bastardos.
Eu não sou um malandro. Não confundir. O malandro é romântico, boa praça; eu sou minimalista, seco, mais para poesia concreta do que para o samba-canção. Eu tenho turbo-carros, gargalho em Miami e entendo muito de vinho. Sei tudo. Ultimamente, apareceram os canalhas revolucionários, que roubam “em nome do povo”. Mas, eu não. Sou sério, não preciso de uma ideologia que me absolva e justifique. Não sou de esquerda nem de direita, nem porra nenhuma. Eu sou a pasta essencial de que tudo é feito, eu tenho a grandeza da vista curta, o encanto dos interesses mesquinhos, eu tenho a sabedoria dos roedores.
Eu confio na Justiça cega do País, no manto negro dos desembargadores que sempre me acolherão. Eu sou mais que a verdade; eu sou a realidade. Eu acho a democracia uma delícia. Eu fico protegido por um emaranhado de leis malandras forjadas pelos meus avós. E esses babacas desses jornalistas pensam que adianta esta festa de arromba de grampos e escândalos. Esses shows periódicos dão ao povo apenas a impressão de transparência, têm a vantagem de desviar a atenção para longe das reformas essenciais e mantêm as oligarquias intactas. Este País foi criado na vala entre o público e o privado. Florescem ricos cogumelos na lama das maracutaias. A bosta não produz flores magníficas? Pois é. O que vocês chamam de corrupção, eu chamo de progresso. Eu sou antes de tudo um forte!

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